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E estava eu aqui...
Monday, April 26, 2004
 
E estava eu aqui....

aqui, mais uma vez, a olhar através dos vidros espelhados desta janela. Via o meu reflexo enevoado inserido numa moldura que limitava os contornos de uma paisagem também ela pouco definida...

E estava eu aqui a imaginar que o tempo passaria, sem que mesmo eu o detivesse. Quando pensava no tempo, imaginava-o como um simples instrumento de trabalho...algo que poderia facilmente ser manuseado, modificado de acordo com as minhas necessidades. Mas isso já foi há muito tempo atrás. Entretanto, progredi na minha maneira de ver a realidade e já creio que o tempo passa, independente da minha vontade. E um segundo é sempre um segundo, e um minuto sempre um minuto, e uma hora ...bem, uma hora não sei, porque nunca tive a paciência de a contar devidamente...fiquei-me pelos 45 minutos e alguns segundos, da ultima vez que o experimentei. Mas isso não interessa nada...mesmo nada! Até porque, mesmo que uma hora não seja exactamente uma hora, será sempre algo parecido e eu nunca terei qualquer influência nisso. É aí que reside o corolário da minha conclusão...a inépcia de manipulação da variável tempo.

Apetece-me encher estas linhas de palavrões pela incapacidade de jogar o que de mais fácil aparenta ser...o de jogar tempo, o de comprar tempo, o de recriar tempo...mas isso é tudo uma grande merda! O que realmente interessa abordar aqui é que, conseguindo ou não mexer nos ponteiros do relógio, fechados a sete chaves, o tempo só passa quando eu estou presente...a noite e o dia não são bem noite e dia....os outros participantes desta encenação toda não são bem reais...e tudo o que me rodeia só o é quando, de facto, me rodeia. É óbvio, mesmo quando me tentaram impingir o contrário. Nunca fui assim tão imbecil, tão ingénuo a ponto de acreditar que a vida existe sem mim...disseram-me que o mundo nasceu há muitos milhões de anos...ou seria biliões...palavras engraçadas, mas desprovidas de significado! Aldrabões, cheios de gula pelo conhecimento dos outros, é o que eles são! Sabiam muito bem que já sabia disso, e muito mais, e por isso perseguiram-me com mentiras e paradoxos universais...daqueles sem solução. Sem solução!! Como se alguma coisa não tivesse solução! Idiotas é a palavra!!

Ainda ontem, alguém...digo alguém porque para mim são todos iguais. Não há qualquer razão pela qual eu o destaque, a não ser por particularidades que fujam da homogeneidade normal física dos demais. Mais baixos ou mais altos...mais gordos ou mais magros...mais peludos ou menos peludos...libertando mais odores ou sendo mais brandos de pele...mais sonoros ou menos sonoros...mas sempre verdadeiramente estúpidos. Como eu dizia...ontem, alguém levantou a possibilidade...com aquele tom de voz que instiga a uma resposta pronta...daquelas respostas ‘não...não será bem assim...’ ou ‘discordo’ e mais um conjunto de outras possibilidades de resposta cliché, derivadas da mesma natureza: a natureza da negação para a possibilidade de criação. A meu ver, a única criação seria a de um punho fechado no nariz do indivíduo. Mas isso seria um roubo. Um ultraje. Uma verdadeira maneira de retirar o prestígio que me é devido ao saber agir em sociedade...sociedade....adiante falarei 'disso' também! Não é que mereça muitas palavras...mas pronto...eu estou preparado a educar o mundo!

Mais uma vez, ainda ontem alguém me desafiou com um dilema universal. A pergunta acerca da existência ou não de Deus. Ri-me sem me conter. Achei que não me devia mesmo conter por duas razões. Primeiro, porque o indivíduo era um cliché saltitante, querendo parecer mais alto do que o seu miserável um metro e meio, através do seu ignóbil ‘estica’ de dedos dos pés. Era uma imagem cómica, mesmo sem abrir a boca, mas, quando o fazia, era impossível reter as lágrimas derivado da explosão que era a combinação da comédia visual amalgamada com os sons animalescos que aquela criatura emitia. Parecia que suplicava ‘abatem-me! Sou estúpido e não mereço sequer um segundo da atenção de ninguém’. Depois, porque retirar informação, a quem a detém, só pode ser feita com talento, com intuição, com capacidade e habilidade mentais, com convivência com mais de uma dezena de neurónios. Por outras palavras, quem quer informação tem que ser inteligente e saber o que procura. Para encontrar uma rua nunca saio de casa sem um mapa, sem uma indicação precisa da zona onde se localiza, de uma estação de metro que fique perto, de um monumento que me auxilie a situar, de uma instituição que constitua um marco espacialmente próximo. Mas este tipo saiu à rua, à procura de uma rua que ficava noutra zona, noutra cidade, noutro concelho, noutra região, noutro país, noutro continente, noutro planeta, que não o dele! Provavelmente, deveria ter ido a Marte fazer o mesmo tipo de pergunta, porque aqui ninguém lhe responderia, e eu, que por acaso até sabia a resposta, nunca a daria...e muito menos a um tipo que procura não sabe o quê, não sabe porquê, nem sequer sabe perguntar devidamente...
Quando me ri, ele seguiu-me na gargalhada com um riso....imbecil! deixou-me nervoso! Parei e perguntei-lhe se sabia porque ria...se sabia que por acaso podia estar a rir dele! À custa da sua ignorância...à custa da sua figura! Esperei pela resposta, enquanto ele compunha a cara...ou seja, parava de sorrir e tentava pôr um ar sério...sério e estúpido! Achou bem rir de si próprio! Achou bem rir de si próprio! Tenho que repetir esta frase no mínimo uma vez porque de facto deixou-me perplexo... apeteceu-me puxá-lo e gritar-lhe aos ouvidos! Gritar bem alto que nunca conseguiria uma conversa de adultos comigo! Nunca teria uma resposta coerente, a uma pergunta por ele dirigida! Teria sim o simples ‘olá’ e ‘tchau’, que me é devido, por sermos colegas de trabalho. Mas não! Não o fiz! Não o poderia fazer porque ele causava-me asco....ele e todos os outros! Mostrou-me um focinho de cão, cujo o dono lhe prepara a comida. Abanava o rabo, sem entender que eu lhe dizia: ‘não vais comer...hás-de morrer à fome! De mim nunca terás um pedaço de carne’. E dizia-lhe isso tudo com um simples olhar.

Aliás, isso é outra coisa que me irrita. As pessoas olharem olhos nos olhos e nunca entenderem nada do que lhes é dito. Tudo precisa de ser verbalizado! Que limitação atroz! Entendo sempre as respostas pelos olhares que me são dirigidos, mesmo que evite esse tipo de confrontações. E faço esforço para que os outros me compreendam, até porque sou bastante poupado nas palavras...é uma perda de tempo verbalizar!

Acabei por lhe dizer: ‘Depende’. A resposta mais inadequada de valor inestimável. A resposta que me poupa palavras. A resposta que me poupa dores de cabeça, por ver que ninguém entende a realidade, mesmo que eu a explicasse. Pareceu-me uma optimização do processo de parar enquanto é tempo, de o fazer desistir de me perguntar. Até porque esta resposta a esta pergunta até a mim me deu vontade de rir. E foi isso mesmo que eu fiz. Ri-me de novo. Ele, completamente cego, ria. Ria agora mais alto. Tentava superar-me nos decibeís, já que em altura perdia em muito. Tive que parar, porque esta competição já incomodava o meu raciocínio e porque não levava a nada. Acho que o deixei feliz. Ele sorriu com os olhos. Já estava mais calmo e menos confuso. Estranho. Estava menos confuso, mesmo depois da resposta ‘depende’. Não há mesmo salvação possível, pensei eu. E quando me preparava para o deixar, com o fluente e social ‘tchau’ (e o subentendido ‘vemo-nos nunca’), ele voltou à carga. Fez-me lembrar aqueles filmes antigos dos meio-heróis. Aqueles menos bem pagos que os verdadeiros heróis. Aqueles que se sacrificam por algo que nunca vêem o resultado. Aqueles que são feridos de morte e, mesmo assim, esboçam o sorriso ensanguentado de quem cumpriu bem o seu papel. Assim era este personagem, ferido com a adaga do ‘depende’ e, mesmo assim, despedia-se a custo, levando o mal com ele. Levando o risco para o bom desenvolver de uma sociedade futura. Eu, subentende-se, seria o mal aqui. A personagem que faria a sociedade correr risco de sucesso. Assim, e porque não me agradava guiões de cordel (e de cordel barato e falível...detesto quando um cordel se parte...parece que o mundo é todo muito frágil...mas não me sinto assim, felizmente), contive a tentação de lhe espetar uma faca mais aguçada directamente no coração. Ainda o tornariam um mártir. Um exemplo social. Um elemento fundamental no progresso do bem contra o mal. O melhor mesmo seria dar-lhe a cura para as mãos e ficar à coca, lá atrás, entre os arbustos, a rir desalmadamente com a forma como ele, estupidamente, lidava com o material, esvaindo-se em sangue. ‘tudo depende da forma como foste educado’. Foi a resposta que o deixou devidamente confuso. Retirei as tropas e preparei-me para o abandonar. Não sou soldado que assista a linchamentos. Só dou ordens. Mas ele contorcia-se de dor, respirava a custo, e a custo lhe saíram as palavras ‘bem...sou católico...e de facto acredito...mas isso significa que não sendo católico não acreditaria em Deus?’. Suspirei, de costas viradas para ele. Franzi a testa, de costas viradas para ele. Desesperei, de costas viradas para ele, e só depois me arranjei (só depois me penteei intelectualmente). Ainda de costas (porque é a melhor posição para dialogar com indivíduos que não entendem olhares), respondi novamente: ‘Depende’. Ninguém resiste a dois ataques fortes como este ‘Depende’. Esta adaga enterrada no coração. A outra no crânio (o facto de ser oco, fez com que resistisse tanto). Agora sim, fazia-me lembrar os filmes de segunda série, em que por mais facas, por mais ataques despoletados contra determinadas personagens, elas não caíam. Não pereciam em paz. Não deixavam os outros em paz e sossego. ‘Respondes a tudo com a palavra depende?’. Olhei para o relógio, cujos ponteiros só correm para mim, e corri para fora daquele espaço, que me consumia, me puxava aos poucos para um buraco difícil de abandonar.

Saio agora de casa com a alma mais limpa, com menos vozes a atrofiar o meu pensar. Mas nem por isso mais confiante. Passeio-me, mais na minha mente, do que nas ruas desta cidade imberbe. As ruas sujas de vida arrepiam-me. Preciso de distanciamento de pessoas. Perguntem-me porque nunca abandonei a cidade e a resposta será sempre porque não fazia parte do desígnio. Mas isso de desígnios não aprofundarei mais, porque a chave do universalismo, a chave do conhecimento será apenas do seu mestre. Uma chave não pode simplesmente ser dada aos outros, senão mais vale ter sempre a porta aberta e nem sequer existirem as chaves. Ou, se calhar, mais valeria nem ter porta. Mas não ter porta é sempre um convite aos usurpadores de riquezas, cujo o verdadeiro valor lhes será sempre desconhecido. Os sentidos têm que ser respeitados. Esta é a primeira lição que lhes passo. E talvez uma das mais importantes. Mas isto não se trata de um enunciar de leis ou lições. Nem sequer lhes passo tpc’s, porque mesmo que o fizesse nunca saberiam como resolvê-los.

Caminho com passos firmes mas suaves. Caminho com destino certo, como sempre faço. Caminho, porque dou aos outros, àqueles que pensam existir para além da minha existência, um pouco dos segundos, dos minutos e das inconstantes horas da minha vida. Dou-lhes um bocado de mim, confiante que, nem assim, obtêm a minha essência. Essa está guardada com a outra das chaves, num cofre que tenho em casa, bem escondido. A chave, por seu lado, guardo-a junto ao coração, atada com um cordel. Este cordel já se partiu por diversas vezes e, por diversas vezes, tive o medo de perder o bem mais precioso que guardo. Na verdade, a minha alma, a minha essência, o meu respirar estão seguros por um simples cordel, cuja fragilidade se compara à fragilidade da existência dos demais que me rodeiam no dia a dia. Mas tem que ser assim. Nada de ouro, nada de prata ou outro bem avaliado monetariamente como sendo precioso. Que sabem eles de preciosidades? Atropelam tesouros todos os dias e têm cofres em bancos, guardados por pessoas. Ainda ontem assisti ao acto do assassinato de alguns fios de relva, alguns fios de vida, por um indivíduo, que, após ter visto o brilho de uma moeda, saltou tal ladrão de almas por cima das criaturas e as esmagou...e tudo por uma simples moeda. Uma moeda que guardava os odores a peixe, da última transacção. Uma moeda que, provavelmente, tinha sido passada juntamente com esta ou aquela doença dérmica. Uma moeda, cujo valor facial, o valor enunciado com pequenos números sujos, mentia declaradamente e, claro está, este indivíduo estava disposto a tudo para a obter. Gritei-lhe, mas era já tarde demais. Ele olhou para mim, ainda com o sabor do sangue da boca, da caçada perene mas cansativa, e quase me mordeu com as palavras ‘É minha! Via-a primeiro’. Estou-me a cagar se a viste primeiro meu sacana. Destruíste um bem deveras precioso, em troca de uma merda de metal que cheira mal como tu. Estas eram as palavras que lhe passei, sem mover os lábios. Mas mais uma vez, não fui compreendido. Nem podia! Um tipo que assassina não pode compreender exortações não verbalizadas. E, mal disposto, cheguei a casa. E agora estou, mais calmo, mas não tão calmo como deveria, a caminhar, noutro momento temporal, noutro espaço, noutra dimensão, com outros intervenientes. O jardim já ali se encontra à minha frente. Um verdadeiro poço de sabedoria, de riqueza, de emoções positivas. Mas que sabes tu disso? Tu que lês isto...sim tu! Lês e mesmo assim abanas a cabeça dizendo ‘tem razão, sim’ e, no entanto, para que serve de novo verbalizar? Sou parco nas palavras...sou parvo na utilização da escrita! Não vale a pena escrever. Mas tenho que o fazer. Mais uma vez está tudo nos desígnios. Mas não vou levantar o véu para vocês não se mostrarem infantil e incredivelmente curiosos. Não o farei, mesmo que isso já tenha sido gerado por anteriores menções.

Sentado no banco do jardim pode ver-se muita coisa. Um pato a cuidar dos pequenos e a protegê-los das crianças, que se distraem a acertar-lhes com pedras. Jogo curioso. Deve ser interessante ver os cérebros esmagados de tão pequenos seres. Ver as suas pequenas patas atrofiadas a colarem-se ao corpo, depois de alguns dias de putrefacção. A ver as formigas a cumprirem o seu papel, enunciado nas suas listas de ordens, lá em baixo, algures nas suas tocas. Essas ordens, segundo me confidenciaram, estão escritas nas paredes dos túneis, para que ninguém as esqueça. Chamam-lhes as ordens do ecossistema. Nome pomposo para seres tão pequenos. Mas cumprem-nas e, mesmo com alguns atrasos, repõem equilibrios, onde alguém se encarrega de os tentar destruir.
Sentado, vejo as abelhas, as moscas, as libelinhas, as centopeias, as aranhas, os pardais, os pombos, alguns escaravelhos e algumas joaninhas. Hoje decidi que deveria estar mais próximo e deitei-me entre as plantas, sem magoar nenhuma delas. Deitei-me, esticando as pernas suavemente, sempre observando cada movimento que fazia, até me acomodar. Cheirei a natureza, senti-a, misturei-me com ela. Derreti-me entre os pós, entre os bocados de terra, entre as folhas mortas que eram consumidas pela terra fofa. Sorvi a força da vida entre bocados de morte espalhados entre mim. Senti a morte a consumir-me. A conceder-me vida. A exalar, através de mim, o último expirar de gemidos mudos de guerras e batalhas perdidas. Contar de histórias poéticas de amores perdidos, de vinganças sofridamente perdidas. Era como ir ao teatro em detrimento do cinema. Aqui os actores sofriam à minha frente, falhavam à minha frente, e eu era a única e verdadeira assistência. Enterrava os dedos mais e mais fundo na humidade da terra fofa e quente. Senti-a gemer alto. Senti-a em comunhão comigo. E sempre sem palavras. Apenas com sentimentos puros. Algo estranho, para além das fronteiras deste pequenos jardim. Pequeno grande jardim, será mais apropriado. Levantei-me. Não me limpei, obviamente, porque a terra deveria seguir o seu natural curso. Precipitar-se, ou não, no chão seria o seu fado, escrito algures nas estrelas, que timidamente começavam a aparecer neste céu sujo. Seria como a água nas nuvens. Cairia se isso a fizesse mais feliz. Coberto de pó, de terra e de vida acalmei-me e caminhei. Alguns sujeitos olhavam-me de forma mais intensa e curiosa do que é habitual. Idiotas! Egoístas! Este sorriso, que transporto comigo, é-me devido pela capacidade de comunicação e compreensão de algo que nunca atingirão. Alguns esbugalhavam os olhos. Outros riam. E houve mesmo um que me perguntou se estava tudo bem. Não lhe respondi. Apenas segui o meu destino. Já era tarde.

Mas, mais tarde, já sentado no meu sofá, também ele coberto de pó, pensei. Pensei nas palavras ‘meu senhor...está bem? Caiu? Aleijou-se?’. Complexo. Não consigo chegar a nenhuma conclusão. Parece-me um dilema de tese vs antítese bem demarcado. Por um lado, só me apeteceu cair-lhe em cima literalmente, pela pergunta revelar falta de conhecimento de causa. Por outro...por outro, e por mais que me custe aceitar, a pergunta era de facto uma preocupação relativa ao meu bem-estar. Tinha que voltar a ver essa pessoa, e certificar-me que era sempre, em qualquer circunstância, estúpida, desprovida de sabedoria, incauta, atrozmente imbecil e mesquinha. Que aquela pergunta não tinha sido mais do que um pequeno e acidental desvio no seu curriculum comportamental.
O relógio marcava as 21h e eu estava acordado no sofá. Desde que me lembro, nunca ficava até tão tarde levantado. Bem, quando era pequeno e estúpido...sim, é verdade, também já fui estúpido, mas isso fica para depois...deitava-me tarde e via televisão e jogava umas coisas absurdas e tocava noutras pessoas e sentia a pele nojenta de outros contra a minha. Estava sentado, sem deixar de pensar naquela mulher. Sim...era uma mulher. E quase me tocou. Que asco. Felizmente não o fez, porque teria que ser violento. E isso não me agradava mesmo nada. Destruía muitos equilibrios, tão entrelaçadamente construídos haviam tantos anos.
Lembro-me vagamente de um vestido castanho escuro, muito esguio e longo. De um lenço e de uns óculos escuros, pendurados numa elegante silhueta, como pequenos adereços pendurados nos manequins, que enfeitam as vitrinas das lojas. Mas a face, a pele mal as vi. Nem me interessava. Só de olhar podia ficar contaminado. E isso era de evitar. O dilema perseguia-me, como um minotauro num labirinto de ideias. Mais tarde ou mais cedo teria que lidar com a situação. Teria que fazer face ao monstro. Teria que lutar pela sobrevivência. Será que essa criatura estaria lá, no mesmo local, à mesma hora? Mas tinha que ir preparado. Agora fui quase apanhado de surpresa. Tinha que ir preparado...mas com o quê? Como? De que forma? Era um monstro que eu próprio desconhecia. Era uma criatura que podia ter todo o tipo de artimanhas para me desarmar, por mais armas e por mais bem preparado que fosse. Se calhar, mais valia ir, eu mesmo, sem qualquer tipo de arma. A melhor arma que imagino, a mais letal de todas, seria a surpresa! Ela concerteza não esperaria a minha presença assim tão de repente. Provavelmente pensará que não me atrevo a colocar os pés naquele espaço. Mas isso nunca! Nunca! Deixar de pisar solo sagrado sem uma explicação mais palpável. Explicar ao Olimpo de todos os equilibrios que me ausentei de vez porque simplesmente tive receio de uma criatura ignóbil e estúpida? Isso seria demais! seria um ultraje aceitar a derrota, sem comparecer no campo de batalha...uma cobardia não própria de um combatente de muitas e longas batalhas!
Fosse como fosse, teria que me esquivar dos comentários cortantes, teria que prevenir olhares penetrantes, teria que ter algumas defesas. Tenho sempre as minhas defesas. E esse pensamento reconfortou-me, em cima do sofá nervoso que grunhia ruidosamente.
A noite foi passando e eu dormia. Dormia atento aos sonhos que me revelavam informações sempre úteis. Uma centopeia com dois pares de óculos, mastigava um banco de jardim enquanto lia o jornal, que se encontrava deitado no chão. As folhas passavam devagar, mas sem que nenhuma das suas patas lhes tocasse. Olhei uma imagem que me chamou a atenção. Aproximei-me com um simples esticar de pescoço. O meu pescoço tinha agora mais de 40 cm de comprimento e, mesmo assim, senti-o leve e ágil que nem uma pena. Pequenas letras rúnicas, ou caracteres insectívoros, ladeavam a imagem de um escaravelho da batata que, a julgar pelo enquadramento da fotografia, tinha sido despejado de sua casa por um tal de insecticida. Do banco do jardim já só restavam os pés de metal. A centopeia arrotou e inspirou a página de jornal, que se encontrava aberta, a qual ficou colada à sua face. Num ápice, engoliu a página que se amachucou no interior da sua boca enorme. ‘ontem as notícias eram bem melhores’ disse-me ela. E continuou: ‘tinham mais letras...dá-lhes mais sabor’. De facto, a única coisa mais parecida que me lembro de ter mastigado, eram alguns bilhetes de metro, que nunca me souberam assim tão bem como isso. Faltava-lhes algo. Comer um jornal inteiro era obra pesada. Não me parece que o fizesse e também não estava assim tão curioso quanto ao seu sabor. A minha cara era expressiva. Admirou-me positivamente o facto deste ser conseguir ler o meu pensamento, sem me fazer perguntas escusadas. ‘Andas com um dilema difícil de resolver meu caro...’. Escutei. ‘Aparecer amanhã e ignorar aquela fêmea poderá criar em ti um desejo incontrolável de saber mais, de a conhecer...’. arrotou novamente. Olhou à sua volta, procurando algo de comestível. Resignado, pelo facto de não ter qualquer alimento disponível, continuou: ‘...mas isso podia ser fatal! A quantidade de doenças e rituais imbecis, que ela porventura está impregnada, afundar-te-ia ao lodo da existência...o local sem respiração possível...sem as musas que dão alento aos teus pulmões. Por outro lado, não aparecer seria motivo de chacota, à custa da tua cobardia. Todos ergueriam a tua cara, desenhada em balões prateados, e rir-se-iam sem limites. Esses balões percorreriam todos os espaços, onde os ponteiros do relógio tocam, e todos saberiam o quão cobarde tu foste. Os risos iriam tocar a tua essência de uma forma brutal. Isto se os teus ouvidos não rebentassem com os risos estridentes e não se transformassem na lava que consumiria todo o teu cérebro antes’. Sorriu, fazendo cair alguns bocados pequenos de lascas de madeira que se encontravam anichados no canto da sua boca. Eu caminhei enquanto ele se ria com mais e mais intensidade. Acelerei o ritmo direito a ele com vontade de o magoar. Ele abria a boca mais e mais e eu já corria direito a ele. Tudo parecia ser feito com uma lentidão desmesurada. Por mais que corresse parecia que ele estava sempre tão longe. Mas mesmo assim, cada vez mais perto. Ele descia o seu corpo ao nível do chão. Ao meu nível. Quando a boca dele estava tão aberta quanto o tamanho do meu corpo, eu corri mais depressa e de repente senti-me penetrar a sua boca. E tudo estava escuro. Acendi a luz. Afastei os lençóis e levantei-me. O chão estava frio mas o calor dos meus pés agradeceu. Caminhei até à casa de banho, tentando vincar os pés, no frio do chão, o mais que podia. Abri a torneira e começou a jorrar abundantemente um liquido viscoso e negro, ao invés da tão desejada água leve, limpida, translucida e fresca. Esse liquido rapidamente enchia a banheira e compunha formas tridimensionais assustadoras, que se erguiam, desafiando as leis graviticas, numa textura grossa e baça. Alcancei a torneira e tentei fechá-la, enquanto parte desse liquido já galgava a parte mais elevada da banheira e se precipitava no chão. O esforço foi recompensado com o partir da torneira, que caiu algures dentro desse liquido, fazendo com que algumas gotas fossem expelidas e embatessem no meu pijama. Essas gotas pareciam ganhar vida e eu assustei-me e apressei-me a limpá-las com papel higiénico. A torneira, entretanto, estava algures perdida no meio de um caudal negro. E o caudal escuro pulava para fora da banheira e jorrava com mais intensidade, devido ao enorme buraco deixado pela ausência dela. Já em pânico, mas sem me mover, parei. E o liquido parou também. Deixou de jorrar. Perplexo, aproximei-me pé ante pé. Olhei a banheira negra. De dentro começaram a emergir algumas bolhas de ar. Uma e mais uma. De repente, comecei a ver que algo mais emergia de dentro daquele lago assustador. Algo comprido e afiado. Comprido e afiado como um dedo. E uma mão negra começou a ganhar forma. E um braço. E um nariz e uma boca e um queixo. Dei um passo para trás. Lá de dentro uma forma humana, completamente negra, sentou-se na banheira. Virou a face devagar até encontrar a minha perplexa. ‘que achas agora de convicções? Não tens vontade de te rir...?’. tentei, após o susto do impacto do eco do som das palavras proferidas, perceber de quem se tratava. ‘não vês quem é? Tu que sabes tudo, não sabes quem sou?’. Era ele pois! Era o meu colega...o minorca. E estava aqui para me amedrontar. Para se vingar. Para me retirar o fôlego da vida. Para me chamar cobarde. Para se rir à minha custa. ‘que queres de mim?’, perguntei. Mas ele só se ria. Virei-lhe as costas e, ao iniciar o movimento de abandonar a casa de banho, vi ao longe o espelho, que reflectia a minha imagem assustada e a imagem do minorca completamente limpo e vestido de fato e gravata, ainda sentado no interior da banheira. Tive que olhar de novo para trás e certificar-me.

A banheira estava limpa. Não havia sinais de liquido negro nenhum. Não havia sinais do minorca amedrontador. A minha casa de banho estava como sempre esteve. A brilhar. Abandonei a casa de banho ainda a certificar-me de todos os pormenores. O bidé, a banheira, o lavatório, os azulejos da parede, o chão. Tudo reluzia. Tudo aparentava estar perfeito. E quando entrei no quarto lá estava ele. De novo. A perseguir-me. Deitado, em cima da cama, demonstrando o à vontade de quem se encontra deitado na sua própria cama, no seu próprio quarto, da sua própria casa. De braços cruzados, manifestando a impaciência que era devida à minha perene ausência. Os lábios dele abriram-se e gesticularam. Mas não ouvi nenhum som, senão o meu próprio. Eu a gritar. Nem parecia meu. Só mesmo nesta situação tão extrema é que alguém me poria a gritar. Sentia-me derrotado. Afinal, este indivíduo estava a forçar-me a algo que eu não desejava. E enquanto gritava, sentia as veias do meu pescoço a incharem. A incharem de tal forma, que a minha cara começou a distorcer-se. A ganhar novas formas. A perder as antigas, com as quais me havia habituado, por poucas vezes que me tivesse visto ao espelho. Os meus olhos incharam também. Cada vez mais. De tal forma, que comecei por ver tudo enevoado. E mais e mais, até não distinguir qualquer imagem, forma ou cor. E ainda mais, até só ver a escuridão da cegueira. E caí.

E levantei-me, porque já era tarde. Não costumo levantar-me tão tarde. O despertador não funcionava, porque eu acordava sempre è mesma hora. Nunca precisei de uma máquina para me ajudar nas minhas tarefas. Nem na árdua tarefa de acordar. E, pesadelos deste género, já não eram tão escassos, que me alheassem das minhas responsabilidades. E, no entanto, desta vez não acordei quando devia. Não era um bom augúrio.
Mesmo que hoje não precisasse de acordar cedo, porque era um dos dias institucionalizados de folga, agradava-me sempre os cheiros frescos das manhãs. Os aromas do orvalho das folhas, que iam ficando cada vez mais verdes, à medida que a luz penetrava as suas veias. Os sons matinais, virgens de qualquer ruído corruptor desta tranquilidade sagrada. Costumava sair bem cedo (ou bem tarde para alguns), e passeava pelo parque, junto ao meu local de trabalho, ou, quando me parecia que não ia ter paz e sossego, durante o tempo que ansiava, dedicava mais esforço na empresa de me isolar e caminhava alguns kms até ao parque, que ficava junto à estátua do cavalo e do seu barbudo. O barbudo, a quem me refiro, é um dito indivíduo, que achou por bem pousar em cima do majestoso cavalo, que adorna a parte sul do parque. Este parque era, de facto, uma boa opção para evitar todo o tipo de adversidades e, nomeadamente, esta última que me surgiu. Mas esta última adversidade reveste uma natureza um pouco diferente das anteriores. Resumindo, esta tem que ser enfrentada e as outras têm que ser evitadas. Estes pensamentos, sobretudo aqueles que se referem ao bem estar que me concede uma boa manhã, foram dissertados debaixo de uma carga de água forte e tépida. Sequei-me com a toalha branca e, depois de ter feito a barba, lavado os dentes e a cara novamente, limpei o chão da casa de banho. Detesto um chão molhado. Ou melhor, detesto um chão molhado de uma residência. Um chão molhado e fofo de terra, algures no meio de um jardim ou parque, pode ser bem atraente. Tudo depende do meu estado de espírito e da conversa que tenciono ter com a natureza. Há mesmo dias em que estou horas a fio à conversa, sem ter que pagar a chamada. É tudo feito sem gastar um cêntimo e qualquer uma dessas conversas é de longe mais interessante do que qualquer tentativa de dialogar com um ser humano.
Hoje decidi que faria uma tentativa de parar o tempo. Acabei de decidir isso agora mesmo. Até, se fosse possível, retrocederia o tempo, o mais que pudesse, e enfrentaria a sujeita, que me abordou, nesse mesmo preciso momento em que me dirigiu a palavra. Mas eu não detenho o domínio da chave do tempo. Não detenho o poder de alterar o tempo, mesmo que este me acompanhe como um cão. Que nunca me abandone e que se recuse a viver na minha ausência. Não possuo o engenho de alterar a posição dos ponteiros divinos, a não ser que essa chave me seja concedida definitivamente, ou pelo menos, a título de empréstimo. Que me seja facultada em regime de aluguer. Pagaria com a minha alma. Mas isso nem era tão grave como soa para alguns. Afinal de contas, o pior que me poderia acontecer era encarnar novamente na pele de um ser alto, magro, de duas pernas, dois braços e um conjunto incerto de problemas como o de ter de trabalhar com inergúmenes, o de ter que viver entre imbecis, e o de ter que lidar todos os dias com seres que me são estranhos. Pior que isto...pior que isto, não me ocorre.
A ideia de retroceder o tempo, confesso, só me surgiu na medida em que o meu atraso a acordar causou-me um mal estar difícil de superar. Um mal estar que se reflectiu nas minhas expectativas acerca do dia que se avizinhava. Quando pensei para mim mesmo: ‘bolas...se ao menos eu pudesse parar o tempo para recuperar estes minutos perdidos...’. Mas depois continuei: ‘Porque, em vez de parar o tempo, não retroceder uns segundos, uns minutos e talvez mesmo umas horas? Se detivesse o poder de parar, também me parecia justo deter o poder de retroceder. E se isso se verificasse, porque não o fazer?’. Parecia-me óbvio que esta opção ganhava alento, na medida em que muitos dos problemas, que agora me perseguiam, poderiam tropeçar com uma só rasteira. Poderia, numa única jogada, constatar o que me parecia óbvio mas que me tinha levantado algumas dúvidas. Ou seja, podia verificar que a mulher, que me abordou ontem no parque, não era nem melhor nem pior do que os restantes indivíduos que constituem esta sociedade. Podia também continuar a residir em paz com a minha alma, mesmo que esta estivesse hipotecada, sem que corresse o risco desconfortável de acordar tarde demais. De adormecer demasiadamente tarde. De ter sonhos absurdos. Bem...o deixar de ter sonhos absurdos, talvez não fosse uma boa ideia, porque alguns destes chegam a ser bastante positivos, na medida em que me avisam de situações futuras de risco. Lembro-me de ter sonhado durante uma semana que ia ser atropelado por um automóvel. E fui! Fui atropelado por um carro de criança, dirigido por um delinquente de cerca de 2 anos de idade. Quando tentava afastar o carro de cima do meu pé, senti fortes convulsões debaixo da pele ao nível do tórax. Perdi a força. Não era capaz de afastar o carro. Os pais da criança riam-se da situação. Eu chorava e não me movia. E, podiam ter passado horas e horas, ou minutos e minutos, ou se calhar apenas alguns segundos, mas eu sofri indiferentemente do período de tempo em que permaneci ali. Até que tombei. Tombei sobre um malmequer. E choro hoje a morte desta pequena e frágil flor. E o carro passou. A noite caiu. As estrelas vieram ver-me chorar. A lua incendiou o céu de dor. E eu permaneci ali. Não me lembro de ter voltado a casa nesse dia.

Mas como estava a dizer, o deixar de ter alguns sonhos, como o último que consumiu muito do meu sono, soava-me de forma muito agradável.

Passei a mão pelo peito, ainda a pensar na forte dor que tinha tido há muito tempo atrás. Senti o cordel gasto que se anichava entre os pelos do meu peito. Deixei a minha mão escorregar mais abaixo. Os meus olhos brilhavam. Os meus dedos ganhavam uma sensibilidade especial. Sentia cada rigorosidade do meu peito. Cada imperfeição do cordel. Cada fio finíssimo que fugia da homogeneidade das formas que o compunham. Quase conseguia escutar o ruído do meu dedo a vergar, a quebrar cada pelo do meu peito. A chave, a pequena chave, que em dias mais frios me congelava o peito, parecia maior, dilatada de desejo. Desejosa que lhe pegasse e lhe desse uso. A minha alma parecia saltar do meu corpo. Sentia os olhos inflamados. Sentia uma pressão nos ouvidos, como se tivesse deixado a chaleira no lume e esta protestasse pela minha atenção. Agarrei a chave com toda a força que dispunha, e esta desapareceu dentro da minha mão. Estava a escaldar, mas mesmo assim não tencionava largá-la. As veias salientes na minha mão pareciam saltar ao ritmo do bater de coração acelerado. O cordel quebrou-se aos poucos. Fio por fio. Trouxe a mão, parte do fio e a chave para fora do resguardo que era o espaço entre a minha camisa e o meu peito nu. Por momentos, senti o medo, o frémito mas também a ansiedade de desejar algo. De gritar alto e a bom som o que sempre ambicionei poder fazer. A faculdade de brincar com os ponteiros do tempo. A capacidade de gerir o tempo universal.

As capacidades geradas com essa faculdade eram imensas. Seria como viver um modelo de vida diferente. Um modelo capaz de se recriar em ramificações temporais, que assumiriam a forma que me aprouvesse mais. Umas seriam pequenos esboços comportamentais, sem grandes preocupações de detalhe, enquanto outras gerariam reacções de aceitação, da minha parte, e assumiriam a realidade do espaço temporal, desenhado por mim. Poderia viver todo o tipo de riscos. Assumi-los de forma mais natural e expontânea. Talvez chegasse mesmo a descobrir formas comportamentais mais diversificadas na forma como lidaria com as diferentes situações que me surgiriam. Examinando este engenho de todos os ângulos possíveis, com prós e contras, saltava sempre à vista que a faculdade de ministrar as acções e as reacções, minhas e de outros, seria sempre uma mais valia impossível de negar. E, por isso, inspirei o último fôlego, realmente encenado sem rede de segurança, e desejei entre dentes, murmurando o grito do desejo do tempo.

Este desejo, levado a cabo de olhos cerrados, culminou com um silêncio atroz. Esperei alguns momentos, ainda de olhos fechados. Esperei e esperei e nada. Tímida e receosamente abri os olhos aos poucos. Tudo parecia como dantes. Nada de anormal. Eu parecia igual ao que sempre fora. A chávena suja de café, que se situava em cima da mesa baixa, à minha frente, estava igual. Os livros, os quais muitos nem me lembrava que os tinha, continuavam a enfeitar o móvel escuro, ao meu lado esquerdo. A janela continuava semi-fechada. Nada indiciava qualquer tipo de mudança. Levantei-me e apenas uma fracção de segundo permaneci nessa posição. Voltei a sentar-me porque tudo tremeu. O apartamento, o meu corpo, a minha chávena, os livros que caiam e mostravam as capas estranhas e o próprio móvel, que arrendava o espaço aos despojados livros. Por momentos pensei ter desejado mais do que me era permitido ansiar. Pensei que ia morrer como castigo pela soberba, pelo excesso de ambição. Mas com a rapidez com que tudo havia começado tudo acabou. Alguns pós caíam do tecto, criando o cenário normal de uma daquelas bolas de neve, que as crianças recebem dos pais, quando estes não se lembram de mais nada para lhes oferecer. E então percebi o porquê. Tinha virado o esquema da vida de pernas para o ar. Eu tinha tido autorização para gerir o tempo. Autorização que nunca me deveria ter sido concedida. O preço a pagar seria concerteza grande. Sentia-o firmemente enquanto ia ficando branco de medo e do pó, que se entretinha a esboçar o formato do meu corpo no espaço circunscrito à sala, ou melhor, à bola de neve. Alguém, seja quem fosse, havia aceite a árdua tarefa de repor os equilibrios. Estava a voltar a colocar a bola de neve na sua posição inicial. Estava a repor a ordem natural das coisas, quando eu a havia tentado destruir, quando eu havia criado uma ordem inversa. A declaração claramente visível de que havia feito algo de imoral, algo que me transcendia na sua essência, veio na forma de castigo. Sentia-o nos ossos. sentia-o a circular nas minhas veias. Mas o sentimento mais forte e indiciante disso era eu sentir como que se todo o meu sangue se estivesse a esvair através dos meus poros. algo que me chupava a vida, algo me consumia as entranhas sem me dissecar o corpo. E esse sentimento deu lugar ao vazio. Ao peso pluma e ao esvair das linhas delineadas do meu corpo. Sentia-me como que se alguém tivesse usado uma borracha para apagar o meu corpo e tivesse propositadamente deixado as marcas ténues do esboço original feito a lápis. Estava lá mas era quase irreal. Tocava em mim e não sentia nada. Mas estava lá. Tocava de facto em algo. Mas não humano. Não era humano. Era como que um espectro do meu ser original.



O corpo mais ausente o desejo mais presente. A essência menos nítida e a crença na bondade cada vez menos mítica. O tempo congelou. Eu sentia-me capaz de contemplá-la, tal flor da natureza, durante o interminável tempo, que eu dominava.


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